Finalmente, nas águas do Velho Chico!
Traipu, interior de Alagoas. Penúltima apresentação do projeto Eletrobrás. Como a cidade não tem hospedagem, fomos obrigados a ficar em um hotel em Arapiraca e viajarmos para o vilarejo apenas para apresentar. A prefeitura nos fez um convite para passarmos o dia na cidade e fazermos um passeio de barco pela manhã. Decisão difícil. Meio de turnê, todo mundo cansado, dia de trabalho, viagem de ida e volta no mesmo dia... Consultei o grupo e todos optaram por ir. Apenas Renata ficaria para resolver pendências de produção em outras cidades.
Sendo assim, resolvemos partir bem cedo. Não tão cedo quanto esperávamos, pois nosso super busão nos deixou na mão pela primeira vez com a bateria arriada. Providenciada a chupeta e, com quase uma hora de atraso, estávamos lá de novo dentro dele já firme e forte para carregar a trupe e a tralha.
Na chegada a Trapiu, uma surpresa: o vilarejo, sem sombra de duvida, é o mais pobre pelo o qual passamos. No entanto, é também o mais bonito. Uma comunidade ribeirinha sem qualquer atrativo a não ser uma linda paisagem as margens do Rio São Francisco, cercada de montanhas e colorida pelos vários barcos de pescadores ancorados na margem do rio. Crianças e idosos se banhavam enquanto as lavadeiras acompanhadas de suas bacias entregavam-se ao oficio. Alguns bares desativados e um circo caindo aos pedaços, atolado na lama, completavam o cenário.
A paisagem bucólica, a atmosfera tranqüila e, principalmente, a emoção de chegar ao Velho Chico foi mexendo com todos nós. Os rapazes e Isadora (é claro) foram logo escolhendo o melhor lugar de onde pular e, em minutos, já estavam mergulhados no rio. Enquanto os mais cautelosos (e medrosos) iam se chegando pela margem.
O barco da prefeitura que iria nos levar no passeio havia saído bem cedo e não tinha retornado ainda. Então, enquanto esperávamos, aproveitamos para comer um delicioso peixe frito (um dos melhores que eu já experimentei) no único bar aberto.
E foi nesse clima de cerveja e peixe frito que, de repente, fomos surpreendidos pelo barco, muito maior do que os outros que estavam ali, surgindo ao longo do rio, com um som altíssimo, tocando um forró pé de serra, que deixou meu povo louco. E se tem uma coisa que esse povo gosta é de festa. Pronto! Em minutos, estávamos todos na parte de cima do barco, cantando , dançando, bebendo, em uma catártica euforia coletiva. Quanto mais o barco avançava pelo rio, mas animado o povo ficava. E foi festa pesada! Pense um grupo enlouquecido de alegria, de euforia, de orgulho, de sensação de dever cumprido.
Eu, sentada sozinha na proa, pensava: em dois dias estaremos terminando o Programa Eletrobrás de Cultura. Levamos a peça a 15 cidades, de cinco estados, a um publico de mais de 8 mil pessoas (pelos cálculos do Instituto Data-Japa). Há um mês na estrada viajamos juntos, duas famílias, Ser Tão e Clowns, com suas afinidades e diferenças. Gente. Muita gente. Vinte pessoas. E todos os agregados que foram fazendo parte desta nossa história. Se, no inicio, a falta de experiência do Ser Tão e a ousadia do projeto, nos preocupava; se chegamos a nos perguntar inúmeras vezes se daríamos conta de tantos desafios, agora, a sensação é bem diferente. Já sabemos que damos conta. Não só de cumprir o projeto mas, mais do que isso, de fazê-lo bem feito. Temos ainda pela frente o Prêmio Artes Cênicas na Rua da Funarte, que estende o projeto para mais dois estados – Sergipe e Bahia – mas agora, já sabemos que vai dar certo. E só continuar trabalhando. Todos já conhecem suas funções, a rotina, e como a maquina deve funcionar. E ela vem funcionando muito bem. E ali, naquele rio, navegando pela artéria do Brasil e observando aquelas populações ribeirinhas, o que tomou conta de mim foi mesmo uma forte mistura de orgulho e de dever cumprido.
Em Traipu, tudo que escrevemos em nossos projetos, a cada edital - a vontade de levar a vivencia teatral as regiões pouco favorecidas, o desejo de contribuir para a democratização da cultura, de nos alimentarmos enquanto artistas brasileiros desse país tão rico e tão diverso - tudo ali se materializa, como num passe de mágica, em uma realidade forte, concreta e, acima de tudo, revolucionária.
O contato com esse Brasil ainda esquecido nos re-alimenta. E a ação teatral mostra sua verdadeira essência. Sem ser panfletária, ou partidária ela, ainda assim, é essencialmente revolucionaria. Quando invadimos um vilarejo pobre e desfavorecido como esse, esse Brasil esquecido, da pesca, do trabalho, e da missa; quando montando nossa barraca ali, sempre cercados pelas crianças da cidade, vamos aos poucos invertendo a lógica conhecida – a lógica da paixão de cristo, da missa, do rebolation. E, de repente, surge um Jesus camelô, cantando, dançando, fazendo piada, e até falando palavrão. Os santos viram palhaços e os demônios cabras e serpentes; e, pelo olhar hipnotizado do público, crianças e idosos, vamos percebendo que, mesmo que efemeramente, estamos apresentando um mundo novo. Ou melhor, talvez uma nova forma de ver aquele mesmo mundo de sempre.
Eram esses e vários outros pensamentos que não saiam da minha cabeça enquanto navegávamos ao longo do Velho Chico. E, talvez, por isso e por outras, nem ligamos quando a chuva nos pegou no meio do passeio. E veio forte, pesada, violenta, como são as forças da natureza. Mas, ninguém ligou. Continuamos ali, entregues a festa e aos pensamentos. E só paramos mesmo para mergulhar e nos jogarmos juntos na deliciosa e quente água do rio.
Momento mágico e catártico. Uma verdadeira lavagem d´alma. Merecida. A um grupo que vem trabalhando sem parar há mais de um mês na estrada.
Mas o passeio acabou, e a chuva não parou, e era hora de começar a arrumação para a peça. Eita! Pense outra decisão difícil. Arriscar montar no local pensado na rua, a beira do rio, e correr o risco da chuva não dar trégua, e sermos obrigados a cancelar a apresentação, ou garantir que a peça aconteceria, levando o espetáculo para dentro do ginásio da cidade. Duvida, duvida, duvida. Nosso ônibus não chegava ao ginásio por causa da lama, e o único jeito seria conseguirmos um caminhão da prefeitura que pudesse levar nossas coisas até lá. E o publico? Viria? Tendo que atravessar o lamaçal? Ouve opinião de um, de outro: grupo dividido. No final, pesou mesmo o medo de não conseguirmos apresentar naquele lugar tão especial, e acabei optando por garantir a apresentação mesmo que dentro do auditório.
Péssima escolha, diga-se de passagem. A apresentação foi muito prejudicada em um auditório enorme, sem iluminação adequada (pois ele não suportava nossa tralha e tivemos que adaptar a luz), e o resultado foi uma apresentação tecnicamente sofrida. Para nós, é claro, que já vimos outras bem melhores. Para o publico, não. Único. Lotado de crianças de todas as idades. Na grande maioria a primeira experiência teatral de todo aquele povo. Muitas crianças. Mas muitas crianças mesmo. E adultos e idosos também.
E mais uma vez, cumprimos nosso objetivo. Na maneira do possível. Dessa vez, porém, com um gosto mais especial. Gosto de um grupo que se sente feliz de estar fazendo o que faz: uma coisa boa para nós, para o teatro nordestino, e pelo povo sofrido desse nosso país!
Sendo assim, resolvemos partir bem cedo. Não tão cedo quanto esperávamos, pois nosso super busão nos deixou na mão pela primeira vez com a bateria arriada. Providenciada a chupeta e, com quase uma hora de atraso, estávamos lá de novo dentro dele já firme e forte para carregar a trupe e a tralha.
Na chegada a Trapiu, uma surpresa: o vilarejo, sem sombra de duvida, é o mais pobre pelo o qual passamos. No entanto, é também o mais bonito. Uma comunidade ribeirinha sem qualquer atrativo a não ser uma linda paisagem as margens do Rio São Francisco, cercada de montanhas e colorida pelos vários barcos de pescadores ancorados na margem do rio. Crianças e idosos se banhavam enquanto as lavadeiras acompanhadas de suas bacias entregavam-se ao oficio. Alguns bares desativados e um circo caindo aos pedaços, atolado na lama, completavam o cenário.
A paisagem bucólica, a atmosfera tranqüila e, principalmente, a emoção de chegar ao Velho Chico foi mexendo com todos nós. Os rapazes e Isadora (é claro) foram logo escolhendo o melhor lugar de onde pular e, em minutos, já estavam mergulhados no rio. Enquanto os mais cautelosos (e medrosos) iam se chegando pela margem.
O barco da prefeitura que iria nos levar no passeio havia saído bem cedo e não tinha retornado ainda. Então, enquanto esperávamos, aproveitamos para comer um delicioso peixe frito (um dos melhores que eu já experimentei) no único bar aberto.
E foi nesse clima de cerveja e peixe frito que, de repente, fomos surpreendidos pelo barco, muito maior do que os outros que estavam ali, surgindo ao longo do rio, com um som altíssimo, tocando um forró pé de serra, que deixou meu povo louco. E se tem uma coisa que esse povo gosta é de festa. Pronto! Em minutos, estávamos todos na parte de cima do barco, cantando , dançando, bebendo, em uma catártica euforia coletiva. Quanto mais o barco avançava pelo rio, mas animado o povo ficava. E foi festa pesada! Pense um grupo enlouquecido de alegria, de euforia, de orgulho, de sensação de dever cumprido.
Eu, sentada sozinha na proa, pensava: em dois dias estaremos terminando o Programa Eletrobrás de Cultura. Levamos a peça a 15 cidades, de cinco estados, a um publico de mais de 8 mil pessoas (pelos cálculos do Instituto Data-Japa). Há um mês na estrada viajamos juntos, duas famílias, Ser Tão e Clowns, com suas afinidades e diferenças. Gente. Muita gente. Vinte pessoas. E todos os agregados que foram fazendo parte desta nossa história. Se, no inicio, a falta de experiência do Ser Tão e a ousadia do projeto, nos preocupava; se chegamos a nos perguntar inúmeras vezes se daríamos conta de tantos desafios, agora, a sensação é bem diferente. Já sabemos que damos conta. Não só de cumprir o projeto mas, mais do que isso, de fazê-lo bem feito. Temos ainda pela frente o Prêmio Artes Cênicas na Rua da Funarte, que estende o projeto para mais dois estados – Sergipe e Bahia – mas agora, já sabemos que vai dar certo. E só continuar trabalhando. Todos já conhecem suas funções, a rotina, e como a maquina deve funcionar. E ela vem funcionando muito bem. E ali, naquele rio, navegando pela artéria do Brasil e observando aquelas populações ribeirinhas, o que tomou conta de mim foi mesmo uma forte mistura de orgulho e de dever cumprido.
Em Traipu, tudo que escrevemos em nossos projetos, a cada edital - a vontade de levar a vivencia teatral as regiões pouco favorecidas, o desejo de contribuir para a democratização da cultura, de nos alimentarmos enquanto artistas brasileiros desse país tão rico e tão diverso - tudo ali se materializa, como num passe de mágica, em uma realidade forte, concreta e, acima de tudo, revolucionária.
O contato com esse Brasil ainda esquecido nos re-alimenta. E a ação teatral mostra sua verdadeira essência. Sem ser panfletária, ou partidária ela, ainda assim, é essencialmente revolucionaria. Quando invadimos um vilarejo pobre e desfavorecido como esse, esse Brasil esquecido, da pesca, do trabalho, e da missa; quando montando nossa barraca ali, sempre cercados pelas crianças da cidade, vamos aos poucos invertendo a lógica conhecida – a lógica da paixão de cristo, da missa, do rebolation. E, de repente, surge um Jesus camelô, cantando, dançando, fazendo piada, e até falando palavrão. Os santos viram palhaços e os demônios cabras e serpentes; e, pelo olhar hipnotizado do público, crianças e idosos, vamos percebendo que, mesmo que efemeramente, estamos apresentando um mundo novo. Ou melhor, talvez uma nova forma de ver aquele mesmo mundo de sempre.
Eram esses e vários outros pensamentos que não saiam da minha cabeça enquanto navegávamos ao longo do Velho Chico. E, talvez, por isso e por outras, nem ligamos quando a chuva nos pegou no meio do passeio. E veio forte, pesada, violenta, como são as forças da natureza. Mas, ninguém ligou. Continuamos ali, entregues a festa e aos pensamentos. E só paramos mesmo para mergulhar e nos jogarmos juntos na deliciosa e quente água do rio.
Momento mágico e catártico. Uma verdadeira lavagem d´alma. Merecida. A um grupo que vem trabalhando sem parar há mais de um mês na estrada.
Mas o passeio acabou, e a chuva não parou, e era hora de começar a arrumação para a peça. Eita! Pense outra decisão difícil. Arriscar montar no local pensado na rua, a beira do rio, e correr o risco da chuva não dar trégua, e sermos obrigados a cancelar a apresentação, ou garantir que a peça aconteceria, levando o espetáculo para dentro do ginásio da cidade. Duvida, duvida, duvida. Nosso ônibus não chegava ao ginásio por causa da lama, e o único jeito seria conseguirmos um caminhão da prefeitura que pudesse levar nossas coisas até lá. E o publico? Viria? Tendo que atravessar o lamaçal? Ouve opinião de um, de outro: grupo dividido. No final, pesou mesmo o medo de não conseguirmos apresentar naquele lugar tão especial, e acabei optando por garantir a apresentação mesmo que dentro do auditório.
Péssima escolha, diga-se de passagem. A apresentação foi muito prejudicada em um auditório enorme, sem iluminação adequada (pois ele não suportava nossa tralha e tivemos que adaptar a luz), e o resultado foi uma apresentação tecnicamente sofrida. Para nós, é claro, que já vimos outras bem melhores. Para o publico, não. Único. Lotado de crianças de todas as idades. Na grande maioria a primeira experiência teatral de todo aquele povo. Muitas crianças. Mas muitas crianças mesmo. E adultos e idosos também.
E mais uma vez, cumprimos nosso objetivo. Na maneira do possível. Dessa vez, porém, com um gosto mais especial. Gosto de um grupo que se sente feliz de estar fazendo o que faz: uma coisa boa para nós, para o teatro nordestino, e pelo povo sofrido desse nosso país!
Christina Streva